Um dos maiores avanços no reconhecimento de direitos LGBT aconteceu com o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.2778, julgadas em conjunto, onde tivemos o reconhecimento das uniões homoafetivas. Foi um processo de longo debate na Suprema Corte Constitucional, com presença de “amicus curie”, em torno dos princípios constitucionais e da regra disposta no art. 226 da Constituição Federal. A tese principal defendida foi a da “força normativa” dos princípios constitucionais e o fortalecimento do que compõe o marco doutrinário do suporte teórico ao “Neoconstitucionalismo”, no qual o Poder judiciário teria legitimidade para decidir a questão9. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da igualdade (art. 5º, caput), da não discriminação (art. 3º, inciso IV), da liberdade (art. 5º, caput) e da proteção jurídica10.
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No julgamento do RE 477554/MG o entendimento da suprema corte pode ser sistematizado por intermédio da leitura de sua ementa: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO - ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF) - O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA - O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - ALGUNS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA SUPREMA CORTE AMERICANA SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA FELICIDADE - PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA (2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA, INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTIDADE DE GÊNERO - DIREITO DO COMPANHEIRO, NA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA, À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA PENSÃO POR MORTE DE SEU PARCEIRO, DESDE QUE OBSERVADOS OS REQUISITOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL - O ART. 226, § 3º, DA LEI FUNDAMENTAL CONSTITUI TÍPICA NORMA DE INCLUSÃO - A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - A PROTEÇÃO DAS MINORIAS ANALISADA NA PERSPECTIVA DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL - O DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE IMPEDIR (E, ATÉ MESMO, DE PUNIR) “QUALQUER DISCRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS” (CF, ART. 5º, XLI)- A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O FORTALECIMENTO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: ELEMENTOS QUE COMPÕEM O MARÇO DOUTRINÁRIO QUE CONFERE SUPORTE TEÓRICO AO NEOCONSTITUCIONALISMO - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
9 Compreende-se que o processo natural e legitimo de reconhecimento e revisão constitucional deve acontecer dentro do processo legislativo. Assim, temos a iniciativa pioneira do parlamento dinamarquês em 1989, seguida por países nórdicos al longo da década de 90 e até em países latino-americanos, como Argentina. No entanto, existem diversos países que tiveram, diante da inércia do poder legislativo, o reconhecimento dos direitos dos homossexuais por intermédio da jurisdição constitucional, como ocorreu no Canadá, Hungria, Israel e África do Sul.
10 Todos os dispositivos citados são referentes à Constituição Federal de 1988.
O reconhecimento das uniões homoafetivas representa um marco, pois por intermédio dele, diversos outros direitos – decorrentes dele - foram criados podendo citar o direito a alimentos11, direito a partilha de bens, direito a sucessão do parceiro falecido, direito a percepção de benefícios previdenciários, direito ao reconhecimento da união homafetiva “pós- mortem”, direito a fazer declaração conjunta de imposto de renda, direitos decorrentes da propriedade - alienação, direito a visita intima nos presídios, direito a obtenção de licença para tratamento de pessoa da família, licença em caso de morte do companheiro, entre tantos outros.
No ordenamento jurídico brasileiro, não há positivação relativa ao reconhecimento das uniões homossexuais, fruto de um sistema heteronormativo de produção de leis e do Direito. Antes desta decisão do STF, prevalecia a insegura jurídica das relações homoafetivas, onde em decisões esporádicas se reconhecia as uniões homoafetivas de forma precária.
Essa ausência de proteção aos direitos de existência e reconhecimento dos homossexuais como cidadãos é a ratificação do conceito de homofobia institucionalizada na produção legislativa do nosso país. Para citar um exemplo, dentre os princípios fundamentais, cabe destacar o art. 3º, IV da Carta Magna que começa a enunciar o direito à igualdade de todos perante a lei, ao pontificar tacitamente: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A orientação sexual do indivíduo não está positivada de forma expressa no texto constitucional. Sob a máscara da neutralidade, a legislação constitucional e infraconstitucional esconde o preconceito contra homossexuais.
No entanto, a doutrina colabora para uma interpretação mais abrangente do disposto no art. 3, IV da CF/88. José Afonso da Silva (2005, p.48) ressalta que a vedação constitucional às “outras formas de discriminação” protege a o homossexual contra à discriminação e garante a livre orientação sexual. Rios (2002) chega à mesma conclusão, de que o nosso ordenamento jurídico veda a discriminação por orientação sexual, mas por uma interpretação diversa.
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11 No dia 03/03/205, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou a viabilidade jurídica da união estável homoafetiva e entendeu que o parceiro em dificuldade de subsistência pode pedir pensão alimentícia após o rompimento da união estável. Acessado no dia 07/07/2015, em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/STJ-reconhece-possibilidade-de-parceiro- homossexual-pedir-pens%C3%A3o-aliment%C3%ADcia
Para ele, o fundamento da vedação à discriminação contra homossexuais está relacionada com a vedação da discriminação motivada por “sexo”12. Assim, “a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo para quem dirige seu envolvimento sexual, na medida em que a caracterização de uma ou outra orientação sexual resulta da combinação dos sexos das pessoas envolvidas na relação” (RIOS, 2002, p. 133).
Para Dworkin (2005), o princípio da igualdade impede que todas as pessoas devam ser tratadas pelo Estado com o mesmo respeito e consideração. E tratar a todos com o mesmo respeito e consideração, significa reconhecer que todas as pessoas possuem o mesmo direito de formular e de prosseguir autonomamente os seus planos de vida, e de buscar a própria realização existencial, desde que isso não implique na violação dos direitos de terceiros. Na verdade a igualdade impede que se negue aos integrantes de um grupo a possibilidade de desfrutarem de algum direito, apenas em razão de preconceito ao seu modo de vida.
Na mesma linha de raciocínio, temos a compreensão de que o Art. 3º e seus incisos integram os chamados princípios fundamentais, que “visam essencialmente definir e caracterizar a coletividade política e o Estado e enumerar as principais opções político - constitucionais” (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 71). Desse modo, o princípio da não discriminação estabelecido no Art. 3º, inciso IV, visa à promoção da justiça social, considerando que todos são iguais perante a lei.
O Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, afirma que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Contraditoriamente, é da ideia de igualdade que surge o respeito às diferenças, por sermos uma sociedade culturalmente diferente, os seres humanos devem se respeitar mutualmente. Neste sentido, observa Santos: “(...) temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos direitos a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (2003, p. 458). Logo, o surgimento do princípio da igualdade pressupõe o respeito às diferenças e o direito a não discriminação.
Importante entender a interpretação da literalidade do princípio da igualdade, pois o termo “perante a lei” pode passar a ideia de que o dever ou vinculação deve ser posto em prática somente pelo Poder judiciário, no entanto, deve-se compreender que o princípio da igualdade atinge não somente o Poder judiciário, mas também o Poder Legislativo. Assim, afirma Alexy:
O art. 3º, § 1º, da Constituição alemã – “Todos são iguais perante a lei” – é expresso por meio da tradicional formula “perante a lei”. Como sugere seu teor literal, essa fórmula foi compreendida por muito tempo exclusivamente no sentido de um dever de igualdade na aplicação do direito. Por definição, esse dever pode vincular somente órgãos de aplicação do direito, mas não o legislador. De forma sucinta, Anschutz expressou o sentido desse dever da seguinte maneira: “As leis devem ser executadas sem considerações pessoais”. (2008, p. 393/394)
A verdade é que existe uma grave omissão legislativa no sentido de garantir o direito a livre orientação sexual. Isto se dá diante de um Congresso Nacional formado com forte influência do fundamentalismo religioso que tentam barrar projetos que visem garantir tal direito, em regra, sobre os seguintes argumentos: a) relações homossexuais são “pecaminosas”, contraria a lei divina; b) relações homossexuais atentam contra a natureza das coisas; c) relações homossexuais não dão ensejo à procriação, ensejando o enfraquecimento de família; d) a liberação da homossexualidade seria um estímulo à prática sexual desviante.
A ideia de que as relações homossexuais são pecaminosas e contrárias às leis divinas é uma afronta à laicidade do Estado (art. 5º, VI e art. 19, I, ambos da CF/88). Um Estado laico não pode fundamentar seus atos em determinada religião, mesmo que seja a seguida pela maioria da sua população, pois estaria desrespeitando aqueles que não a professam (MACHADO, 1996, p. 347).
O argumento de que as relações homossexuais seriam contra a “natureza das coisas” foi amplamente debatido nesse artigo, constatamos também que em diversos momentos da história das diversas sociedades a homossexualidade constituiu-se numa experiência humana, mesmo que frequentemente problemática. Este argumento, “natureza das coisas”, objetiva estabelecer uma concordância recíproca entre as esferas do ser e do dever-ser (LARENZ, 2001, p.150). O argumento parece ter uma conotação contrária a sua finalidade, dada a recorrência da homossexualidade nas mais diversas sociedades humanas, nessa perspectiva, podemos considerá-la uma coisa natural.
Sobre a finalidade da procriação e a defesa da “família”, inicialmente, cumpre ressaltar que a procriação não é objeto do direito, nem nas relações heterossexuais, diante do número de casais inférteis e da possibilidade de planejamento familiar. Sobre a defesa da “família”, precisamos distinguir o tipo de família que é preciso defender. A família dentro de uma perspectiva patriarcal, hierarquizada, atravessa uma profunda crise causada por diversos fatores, entre eles, a progressiva emancipação da mulher (GIDDENS, 2005, p. 231). A família não deve ser compreendida com um fim em si, mas como um meio que vise permitir que cada um dos seus integrantes se realize como pessoa, em um ambiente de comunhão, de suporte mútuo e afetividade (TEPEDINO, 2001, p. 347). Neste sentido, é que se reconhece os novos arranjos familiares e que se deu o reconhecimento das uniões homoafetivas, justamente, por constituírem família.
O argumento de que a livre orientação sexual poderia estimular a práticas sexuais desviantes é a reprodução clássica de preconceitos e intolerância, porquanto a homossexualidade deve ser entendida como uma característica humana, como a cor da pele ou dos olhos (TREVISAN, 2002). Ao reconhecer a união homoafetiva e garantir direitos para homossexuais o Estado estará tão somente respeitando e garantindo a proteção legal para as escolhas individuais das pessoas.
O direito a um tratamento com igual consideração e respeito é pressuposto da própria dignidade da pessoa humana. O fato de que todos os seres humanos são dotados de determinadas características, que os distinguem dos demais seres, é que os tornam destinatários da mesma atenção (APPIO, 2008). O não reconhecimento de um “direito à livre orientação sexual” e da cidadania homossexual viola um aspecto nuclear do princípi o da dignidade da pessoa humana. Em uma perspectiva filosófica, a ideia de dignidade humana repousa na tradição kantiana, pressuposta em que tudo tem um preço, tudo pode ser vendido ou trocado no universo da liberdade. Aquilo que não pode ser trocado, substituído e que não tem equivalente, nem preço, chamam-se “dignidade”. Este está intrinsecamente relacionado à pessoa humana, ao sujeito (Lopes, 2000).
Os seres humanos devem reconhecer-se como fins em si mesmo, devem reconhecer a humanidade em si e nos outros. Este reconhecimento recíproco da dignidade de cada um é o respeito. Na ideia de respeito encerra-se uma forma de reconhecimento, de consciência refletida da minha identidade na identidade dos outros. É no âmbito do Estado que este reconhecimento, impessoal, se conclui, afirmando-se um respeito pelas diferenças e ao mesmo tempo estabelecendo-se um sentimento de solidariedade. Um Estado democrático deve valorizar positivamente a pluralidade de sujeitos.
A verdade é que, para o reconhecimento dos homossexuais faz-se necessária a criminalização da homofobia. A hierarquia estabelecida socialmente entre a heterossexualidade e a homossexualidade deságua em negação de direitos e nas violências psíquicas, que inferiorizam, ou, em muitos casos, na violência física, ocasionando mortes. Neste sentido, tramita no Senado Federal um Projeto de Lei Complementar (PLC 122/06) com este objetivo. Lopes (2000, p. 92), ressalta:
Qual o remédio adequado para a denegrição de certos grupos que termina estimulando a violência contra eles? Em primeiro lugar, de caráter penal : seja civil, seja criminalmente, o problema é tornar certas atitudes passíveis de penas (penas criminais ou civis, como indenização), como se tem feito com o racismo. Outro remédio é garantir aos grupos minoritários liberdade de expressão: que possam manifestar-se publicamente sem que por isso sejam molestados pela polícia ou por outros grupos. Esta tem sido hoje a reivindicação dos grupos homossexuais, como foi outrora a de religiões minoritárias. Em terceiro lugar, demonstrar como o pró prio sistema jurídico incorpora tratamentos que podem ser acusados de discriminatórios, como, por exemplo, a negativa aos parceiros do mesmo sexo de terem direito a licenças para tratamento de saúde do companheiro, ou a falta de garantias, no local de trabalho, de proteção a sua integridade moral.
Deve-se acreditar em um futuro melhor, onde pessoas não sejam mortas devido a sua orientação sexual. Com a aprovação do PLC 122/2006, e a criminalização da homofobia, o Brasil poderá estar dando um grande passo para consolidação de sua democracia. Para, inclusive avançar estabelecendo políticas públicas de redistribuição e reconhecimento direcionadas à emancipação das opressões econômicas e sociais vivenciadas por vários segmentos da população LGBT. Dessa forma, garantindo o direito à livre orientação sexual e a cidadania de homossexuais.
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12 Esse também vai ser o entendimento da Comissão de direitos humanos da ONU no caso “Nicholas Toonen v. Austrália” interpretando o art 2º, §1º, e 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos onde é vedada a discriminação “por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”.
FONTE: Revista de Direitos Humanos e Efetividade | e-ISSN: 2526-0022 | Minas Gerais | v. 1 | n. 2 | p. 98 - 118 | Jul/Dez. 2015.
Rosendo Freitas de Amorim & Carlos Augusto M. de Aguiar Júnior
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