Para Jacques Lacan, o bebê só distinguirá o que lhe é interno ou externo ao reconhecer-se, ou ao Outro, na visão |
Durante dez anos, duas vezes por mês, Lacan realizou seu seminário público, aberto a quaisquer interessados, comentando sistematicamente todos os grandes textos do corpus freudiano e dando origem a uma nova corrente de pensamento: o lacanismo, cujos preceitos seriam discutidos não apenas por psicanalistas, mas por intelectuais de peso como Michel Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (1925-1995).
Em seus seminários, atraiu muitos alunos, fascinados por seu ensino e desejosos de romper com o freudismo acadêmico da primeira geração francesa de psicanalistas. Começou então a ser reconhecido ao mesmo tempo como didata e como clínico, fundando duas escolas de psicanálise, que se dissolveram por divergências internas. Seu senso agudo da lógica da loucura, sua abordagem original do campo das psicoses e seu talento discursivo lhe valeram, ao lado de Françoise Dolto (1908-1988), um lugar especial aos olhos da jovem geração psiquiátrica e psicanalítica.
Em 1951, comprou uma casa de campo a cerca de cem quilômetros de Paris. Retirava-se para lá aos domingos, onde recebia seus pacientes e dava recepções.
O estádio do espelho e o eu ideal
Segundo Lacan, nos primeiros meses de vida de uma criança, não há nada parecido a um eu, com suas funções de individualização e de síntese da experiência. Falta ao bebê o esquema mental de unidade do corpo próprio que lhe permite constituir esse corpo como totalidade, assim como distinguir interno e externo, individualidade e alteridade.
É só entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida que tal esquema mental será desenvolvido. Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento de si na imagem do espelho ou na identificação com a imagem de outro bebê. Ao reconhecer pela primeira vez sua imagem no espelho, a criança tem uma apreensão global e unificada de seu corpo. Assim, essa unidade do corpo será primeiramente visual e é condição fundamental para o desenvolvimento psíquico do bebê.
As imagens determinam a vida do indivíduo, representam um dispositivo fundamental de socialização e individuação, fazem parte da realidade psíquica. A partir delas, nasce a fantasia. Nesse processo, surge um conceito reelaborado por Lacan, a partir de Freud: o eu ideal, que representa a ideia que o indivíduo tem de si mesmo na forma arcaica e que delimitará suas identificações posteriores.
O eu arcaico, segundo Freud, expulsa o insatisfatório e internaliza as experiências satisfatórias. Para Freud, a constituição do eu se dá de dentro para fora; para Lacan, ao contrário, se dá de fora para dentro. Segundo o francês, para orientar-se no pensar, no sentir e no agir, para aprender a desejar, para ter um lugar na estrutura familiar e social, a criança precisa inicialmente raciocinar por analogia (no sentido da mimesis grega): imitar uma imagem na posição de tipo ideal, adotando, assim, a perspectiva de um Outro. Tais operações de imitação são importantes para a orientação das funções cognitivas e afetivas, e têm valor fundamental na constituição e no desenvolvimento subsequentes do eu em outros momentos da vida madura.
Na alienação do sujeito ao Outro, o infans (o “sem palavras”) se identifica e se experimenta. Começa então a circulação do desejo: fazer-se reconhecer, ser desejado e desejar o desejo do Outro. Imagem, palavra, alimento e cuidados são expressões dos rumos da pulsão, em suas diferentes modalidades: oral, anal, visual e vocal. Esse processo vai inscrevendo as representações no inconsciente, o que dará espaço ao processo de estruturação psíquica do sujeito sustentado pelo desejo do Outro.
Depois de reconhecer-se no espelho, as imagens dos irmãos, do pai, da mãe e de seus substitutos sociais farão parte da “imagem ideal”, necessária para a socialização. Esse dispositivo permitirá a entrada da criança numa trama sócio-simbólica, cujo núcleo é a família, mas que se compõe de outras figuras com função de autoridade. Entre esses personagens, o professor tem papel fundamental.
Dessa forma, a criança introjeta uma imagem que vem de fora (do espelho e dos humanos que a cercam). Por meio do olhar, da linguagem, do toque, da entonação da voz do Outro e de outros aspectos da comunicação inconsciente, se estabelece uma intensa troca (ou uma falha também imensa) entre a criança e a cultura.
Assim nasce o sujeito lacaniano, aquela estrutura com a função de ser o lugar em que o eu pode reconhecer-se, mas onde sua autonomia total se quebra diante da dependência do externo.
Outros conceitos desenvolvidos por Lacan:
Essa tríade de conceitos, a partir de 1953, forma uma estrutura que, segundo Lacan, passaria a determinar e equilibrar as relações intrapsíquicas:
– O simbólico designa a ordem civilizatória a que o sujeito está ligado, como um lugar psíquico em que são reconhecidos os discursos produtores de “verdades”.
– O imaginário se define como um lugar no eu onde são acolhidos os fenômenos de representações ilusórias, utilizados para aplacar as vivências angustiantes advindas do real.
– O real designa qualquer fenômeno, aquilo que ainda não tem representações ou simbolizações no eu, que está no plano das vivências corporais ou emocionais e que, em geral, causa angústia ou sofrimento.
Significante
Esse termo foi introduzido por Ferdinand de Saussure (1857-1913) para designar a parte do signo linguístico que remete à representação psíquica do som (ou imagem acústica), em oposição à outra parte, ou significado, que remete ao conceito.
Retomado por Lacan como um conceito central em seu sistema de pensamento, o significante transformou-se, em psicanálise, no elemento do discurso (consciente ou inconsciente) que fará parte de uma série que, por sua vez, determinará os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e de acordo com uma nomeação que vem do simbólico.