segunda-feira, 6 de março de 2023

De que corpo se trata na psicanálise?


O corpo e a sexualidade são duas dimensões do estranho e a psicanálise é um tratamento singular desse estranho

A escuta singular de Sigmund Freud ao sofrimento das histéricas evidenciou que o corpo em sofrimento, representado, imaginado, fantasiado na fala das suas pacientes não correspondia ao corpo anatômico e fisiológico tratado pelo saber médico. Os sintomas, manifestação de uma satisfação paradoxal – misto de sofrimento e prazer –, ganharam, a partir da invenção da Psicanálise, o estatuo de expressão dos impasses humanos em relação ao desejo.

A partir de Freud, o corpo de que a Psicanálise trata é um corpo pulsional, o qual tem a libido como energia sexual. Conforme Freud enunciou em 1915: “…a pulsão nos aparece como um conceito limite entre o somático e o psíquico”, a pulsão é o que pauta a nossa satisfação. O corpo não nos é dado naturalmente, daí não sermos determinados pelo instinto, como ocorre com os animais. Portanto, o corpo para a psicanálise é pulsional, erógeno e afetado pela linguagem. É uma construção a partir da relação com a cultura, na medida em que esse é tocado e marcado pela palavra. Ou seja, nossa biologia é atravessada pelo desejo.

Nesse sentido, a teoria das pulsões compreende a definição de sexualidade. Freud, a partir do conceito de zonas erógenas – bordas pulsáveis e excitáveis do nosso corpo -, ampliou o conceito de sexualidade e despatologizou suas manifestações eróticas. Logo, o fundamento da sexualidade remete a uma dimensão psíquica, não definida pelo anatômico, biológico e genital. A sexualidade não é o lugar da diferença anatômica, mas a representação psíquica desta diferença, que diz da identidade sexual de uma pessoa, seu estranho íntimo.

É de Freud a máxima de que o que temos de mais íntimo é o que nos é mais estranho. Há um estranhamento em habitar a própria pele, aquilo que escapa à palavra, à possibilidade de nomeação e representação. Assim, o corpo e a sexualidade são duas dimensões do estranho e a psicanálise é um tratamento singular desse estranho.

O tratamento psicanalítico privilegia, segundo Jorge Forbes, “a dimensão libidinizante do significante que, ao incidir sobre o corpo, o torna mais vivo e desejante.” Para a psicanálise, ter um corpo é colocá-lo a serviço de sua satisfação e apropriar-se de suas qualidades. Portanto, trata-se de sustentar, na própria pele, a responsabilidade pela singularidade de “usufruir de seu corpo e de sua vida.”

Por Liége Lise 

[Liége Lise é psicanalista. Membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA-SP.]

Fonte: https://ipla.com.br/conteudos/artigos/de-que-corpo-se-trata-na-psicanalise/

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